Crítica – Os Irregulares de Baker Street – 1ª Temporada

ATENÇÃO – O texto contém spoilers sobre série da Netflix. Não leia se não quiser estragar sua experiência.

 

No conto Um Estudo em Vermelho, a primeira história sobre Sherlock Holmes escrita em 1887, Sir Arthur Conan Doyle descreve um grupo de garotos de rua que é utilizado pelo célebre detetive como uma espécie de serviço de inteligência alternativo. E é levemente inspirada nesse grupo que a história de Os Irregulares de Baker Street, nova estreia do catálogo da Netflix, se concentra.

A trama gira em torno de um grupo de adolescentes, formado pelas irmãs Bea (Thaddea Graham) e Jessie (Darci Shaw), e os amigos Billy (Jojo Macari) e Spike (McKell David), que vive em Londres durante a era Vitoriana, e descobre um mundo de monstros gerados por uma enigmática fenda no tecido na realidade, que está liberando uma energia mística em todo o mundo. Esse grupo é recrutado pelo pouco simpático Doutor John Watson (interpretado por Royce Pierreson) para investigar esses casos insólitos, e ao longo do programa, descobre-se a ligação desses personagens com o médico, e mais especificamente, com o detetive Sherlock Holmes.

Durante a primeira investigação, os adolescentes conhecem o jovem Leo, um garoto visivelmente rico e bem educado, que os auxilia com informações e conhecimento sobre botânica, zoologia e assuntos gerais. O garoto, na realidade, é o jovem Príncipe Leopoldo, que tentava fugir de sua condição real para experimentar a vida das pessoas comuns na cidade.

Uma coisa que precisa ficar bastante clara para o leitor é que a série não é sobre Sherlock Holmes, e como um dos membros do Choque de Cultura diria: “Sherlock sem Sherlock é golpe!”

Apesar da ambientação, e das conexões traçadas com o detetive, a primeira coisa que vem à mente ao ver a série na verdade são títulos como Stranger Things e IT: A Coisa. O centro da história é a forma como os jovens lidam com essa ameaça sobrenatural, e aos poucos, descobrem a sua motivação. O grupo conta ainda com a sua própria versão da “Eleven”, quando Jessie descobre ter poderes psíquicos que a permitem entrar na mente das pessoas.

Irregulares na verdade acaba se mostrando um bom nome para o show. Ainda que seja ambientada no final do século XIX, os jovens demonstram ter conhecimento sobre as definições modernas de clonagem, e de múltiplas dimensões, por exemplo. Também é importante ressaltar que o grupo rapidamente aprende a lidar com o oculto, e no intervalo de um episódio, passam a ser tão eficientes quanto os irmãos Winchester em eliminar monstros e ameaças sobrenaturais.

A série tem algumas reviravoltas previsíveis, mas isso não impede o espectador de apreciar o show. A (até então) órfã Jessie descobre seus poderes ao ser resgatada de um pesadelo pelo misterioso “Homem vestindo Linho”, que apesar de ajudá-la, já deixa clara sua ambiguidade, logo no primeiro episódio.

O ponto mais alto da série talvez seja a introdução de um viciado e decadente Sherlock Holmes (interpretado por Henry Lloyd-Hughes). O detetive, descobre-se, passou os últimos quinze anos se drogando para escapar da dor de ter perdidoseu grande amor. Através de uma série de flashbacks que mostram o auge da carreira de Sherlock e Watson, é contada a história do recrutamento da jovem psíquica Alice (Eileen O´Higgins), por quem o detetive acaba se apaixonando. Logo após dar à luz, Alice acompanha Sherlock e Watson em uma missão, e (inadvertidamente) se sacrifica para salvar o mundo.

Ainda que Sir Arthur Conan Doyle tenha descrito Sherlock como pouco interessado em romance, aqui a história utiliza esse amor para dar início ao luto do personagem, e à história das irmãs. Como o leitor já pode desconfiar, a criança que nasce pouco antes do sacrifício de Alice, e filha de Sherlock, é a jovem Jessie.

Desde então, Sherlock abandonou as crianças e se retraiu, sendo consumido pelo seu vício em drogas. Ele só é retirado de seu isolamento autoimposto por Bea e Jessie, filhas de Alice, e aos poucos percebe que falhou por não se apresentar como o pai de que elas precisavam. Mesmo sendo um detetive brilhante, Sherlock não teve a inteligência emocional para perceber que, como pai, sua história não era mais sobre ele.

O arco do Doutor Watson também traz uma redenção final. Sendo retratado inicialmente como arrogante e antipático, ele havia recrutado as crianças por saber dos poderes de Jessie. Ao longo da série, fica evidente que esses poderes são uma herança genética de Alice, o que significa que o doutor tinha conhecimento que a menina era filha do seu parceiro.

O que é revelado nos capítulos finais do programa, é que Watson também sofria com o luto pela perda de seu grande amor. Amor esse, não correspondido, já que o doutor se declara apaixonado por Sherlock. Isso explica por que, quinze anos antes, Watson havia salvado Sherlock, ao invés de tentar ajudar a salvar Alice.

O último episódio da série mostra que a nova abertura da fenda foi feita do outro lado, pela própria Alice, que incapaz de lidar com a perda de suas filhas, não foi capaz de seguir em frente. Essa outra dimensão é retratada como um purgatório, onde almas que não puderam evoluir, vagam a esmo.O plano de Alice então, é abrir permanentemente essa fenda, fazendo com que o purgatório consuma o resto do mundo, eliminando assim a dor da morte, e da vida.

Cabe à Jessie mostrar à sua irmã que a vida é formada por amor e dor, e que os laços formados nos momentos de sofrimento são fortes e valem a pena ser vividos. Entrando nas lembranças da irmã, Jessie mostra a Bea seus momentos mais felizes, e mais dolorosos, lembrando como isso fortalece a relação das duas. Ao fazer isso, ela convence a jovem que a fenda deve ser fechada, mesmo que isso signifique perder sua mãe para sempre.

No último momento, Sherlock percebe que a história não é sobre ele, mas sobre as meninas. Jessie e Bea deram a Sherlock Holmes um último gostinho da vida, mas ele sabe muito bem que está diminuído, uma sombra do homem que era. Mesmo agora, ele é incapaz de ir além de sua dor e, em vez disso, se entrega a ela ao tentar entrar na Fenda para ficar com Alice no Purgatório.

Watson tenta impedi-lo, mas é finalmente forçado a escolher deixar Holmes ir aceitando que o homem que ele ama nunca o amará de volta. Ao invés disso, Watson decide ajudar Bea a tirar Jessie da fenda. Watson acabou provando ser um homem melhor que Holmes, alguém que finalmente é capaz de deixar o passado e, assim, viver novamente.

Os Irregulares termina com mais um momento de tristeza, quando o Príncipe Leopoldo revela que precisa deixar o grupo, e assumir suas responsabilidades, se casando com uma nobre. Leo e Bea haviam se apaixonado, mas ele aceitou um acordo, para que Billy fosse deixado livre pela polícia.Com o coração partido, Bea busca consolo com Watson, perguntando: “Como se faz para deixar de amar alguém, quando esse amor machuca?” O doutor é enfático: “Não se deixa de amar.”

Com uma segunda temporada já confirmada pela Netflix, a série finaliza seu primeiro arco com os personagens lidando com a dor da perda, o verdadeiro vilão de Os Irregulares.


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